Enquadramento

A necessidade de uma resposta efetiva da sociedade aos casos de pessoas em situação de sem-abrigo ou em risco é justificada, em primeira instância, pela realidade concreta de uma forma extrema de pobreza e de exclusão social pela qual muitos indivíduos, ao serem afastados dos múltiplos contextos de participação cívica, deixam de poder fruir das oportunidades de realização em igualdade de direitos com os demais cidadãos.
 
Por outro lado, essa necessidade é sustentada pelo amplo reconhecimento do caráter nefasto que o fenómeno das pessoas em situação de sem-abrigo assume para a sociedade e para todos quantos são por ele afetados ao nível da realização dos seus direitos mais elementares.
 
No plano internacional, a preocupação com esta problemática está patente em diversos instrumentos de interpretação, especificação e garantia dos direitos do Homem, dos quais ressaltam a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (1966), tendo ambos consagrado, entre outros direitos indispensáveis à fruição por parte de todas as pessoas de um nível de vida condigno, o direito à habitação.
 
Outra previsão importante encontra-se consignada na segunda parte da Carta Social Europeia (1961), em sede do artigo 31.º, que obriga os Estados a promover o acesso à habitação, segundo um critério adequado, para evitar e reduzir o número de pessoas sem-abrigo, com a perspetiva da sua erradicação gradual, e tornar o preço da habitação acessível a pessoas com poucos recursos”.
 
Tratando-se, pois, de um direito básico de todos os cidadãos, não é de admirar que a ocorrência de situações nas quais as pessoas perderam ou estão em risco de perder o seu direito à habitação tenha levado os Estados Membros da UE a definir o combate a este fenómeno como uma prioridade de intervenção em matéria de luta contra a pobreza e a exclusão. Exemplo disso mesmo tem sido o facto de, nos últimos anos, os relatórios conjuntos da Comissão Europeia identificarem em quase todos os Estados Membros da UE a necessidade premente de se adotarem políticas eficazes neste domínio, em particular, o de 2007, que veio apresentar o fenómeno das pessoas em situação de sem-abrigo e a exclusão habitacional como sendo um dos três principais desafios a relevar no quadro da estratégia europeia para proteção social e exclusão social.
 
Digna de destaque é também a Resolução B7-0475-2011 do Parlamento Europeu, diploma aprovado por ampla maioria em 14 de setembro de 2011 e por meio do qual se pugna pelo reforço das políticas de combate ao fenómeno sem-abrigo através da adoção pelos Estados-Membros da “Estratégia Europeia de Integração dos Sem-Abrigo”. 
 
Mais recentemente, há ainda a destacar o Relatório da Comissão Europeia "Confronting Homelessness in the European Union", documento apresentado em fevereiro de 2013 no âmbito do "Pacote de Investimento Social" (o qual constitui um quadro político integrado para a “Estratégia Europa 2020”), em ordem a definir estratégias de inclusão mais eficazes para lidar com o fenómeno das pessoas em situação de sem-abrigo na UE.
 
No plano interno, a Constituição da República Portuguesa (1976) segue, enquanto lei fundamental do nosso Estado de Direito Democrático, a orientação dos referidos instrumentos internacionais em matéria de garantia dos direitos humanos, pelo que consigna igualmente o direito à habitação, designadamente, determinando, através do n.º 1 do seu art.º 65.º, que: “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.
 
No que concerne à urgência de resposta a este fenómeno, vários foram os aspetos que concorreram para a adoção de uma estratégia nacional especialmente pensada para combater a problemática no nosso país, dos quais se destacam:
  • A tomada de consciência da expressão de uma forma extrema de pobreza e de exclusão e da insuficiência de conhecimento atualizado acerca do fenómeno;
  • O reconhecimento do deficiente tratamento do problema (resultante, em parte, de lacunas ao nível da articulação entre os diversos agentes, a vários níveis);
  • A necessidade de se consensualizar um tipo de resposta que potenciasse os recursos públicos e privados (evitando-se, ao máximo, que os mesmos pudessem gerar efeitos perversos, nomeadamente, a manutenção e a persistência do fenómeno).
Em 2004 e 2005, foi efetuado, pelo Instituto da Segurança Social, IP (ISS, I.P.), um estudo através do qual se procurou caracterizar a população sem-teto, analisar algumas trajetórias de vida de pessoas alojadas em pensões, quartos alugados ou hospedarias e caracterizar as entidades prestadoras de serviços a estas pessoas.
 
Uma das principais conclusões deste estudo foi a necessidade urgente de ser criada uma estratégia nacional dirigida à prevenção, intervenção e acompanhamento às pessoas em situação de sem-abrigo, com vista à sua efetiva integração.
Tal como preconizava o PNAI 2006-2008, essa estratégia deveria contar “com o envolvimento de todos os níveis do governo e agentes pertinentes”.
 
Atenta, pois, a necessidade de se responder com urgência a todos estes desafios associados à um fenómeno que se carateriza por ser complexo e multidimensional, Portugal avançou, em maio de 2007, com a constituição de um grupo de trabalho interinstitucional/intersectorial coordenado pelo aludido Instituto.
 
O trabalho levado a efeito naquele contexto teve como principais objetivos o cumprimento das diretrizes europeias em matéria de erradicação das situações de sem-abrigo e a adoção de medidas tendentes à criação das condições necessárias ao despiste e ao acompanhamento das situações de risco no quadro de uma ação preventiva.
 
Desse modo, foi, o supradito grupo, responsável pelo desenvolvimento da Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo: Prevenção, Intervenção e Acompanhamento 2009-2015 (ENIPSA).
 
A apresentação pública da ENIPSA veio a acontecer em 14 de março de 2009, tendo a mesma sido na ocasião formalmente adotada através de assinatura de carta de compromisso em torno da implementação de medidas específicas de combate ao fenómeno e da prossecução dos objetivos da Estratégia Nacional. Tais compromissos foram assumidos por entidades de diferentes setores e áreas de atividade (num total de 23 entidades – 18 públicas e 5 privadas), cuja corresponsabilização foi considerada crucial para o desenvolvimento da intervenção interdepartamental preconizada.
 
Sob coordenação do ISS, I.P., aquele amplo conjunto de parceiros constituiu, a nível central, o denominado Grupo de Implementação, Monitorização e Avaliação da Estratégia (GIMAE).
 
O trabalho desenvolvido pelo GIMAE, com as inevitáveis consequências na implementação e monitorização da ENIPSA 2009-2015, foi interrompido em 2013, tendo sido retomados os trabalhos no ano de 2016, na sequência da Resolução da Assembleia da República n.º 45/2016, de 11 de março, e de Despacho do membro de Governo responsável pela área da segurança social. No referido despacho é identificada a premência, junto das respetivas tutelas, do reinício dos trabalhos do GIMAE, com a colaboração das diversas entidades públicas que o integram, para a elaboração e apresentação de um relatório de avaliação da ENIPSA 2009-2015 que contemplasse os respetivos resultados, bem como recomendações e propostas para a futura Estratégia.
 
O relatório de avaliação da ENIPSA 2009-2015 foi apresentado em março de 2017, destacando-se das suas conclusões, o facto daquela Estratégia ter contribuído positivamente para a reflexão desta problemática enquanto laboratório social, uma vez que a ENIPSA 2009-2015 foi a 1ª estratégia nacional integrada no âmbito da questão das pessoas em situação de sem-abrigo, e ainda a 1ª estratégia nos chamados países do “Sul Europa”, colocando o foco no envolvimento de várias entidades, públicas e privadas, tanto na conceção, por ter sido alvo de ampla discussão entre os parceiros, como na respetiva implementação e monitorização. O seu papel foi igualmente relevante ao nível dos serviços de proximidade, já que dinamizou a criação dos designados Núcleos de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA), estruturas locais de apoio/projetos concelhios de parceria interinstitucional que se mantiveram ativos na sua missão de combate ao fenómeno.