A tremer de frio dentro de casa, estes estudantes de Erasmus foram para a rua ajudar sem-abrigo
Começou com uma brincadeira na Internet quando estudantes Erasmus perceberam que Portugal não é um país tropical. Victor Micu decidiu transformar a brincadeira numa campanha de ajuda aos sem-abrigo.
Fonte: O Observador
Data: 31.03.18
Autor: João Francisco Gomes
Fotografias: João Porfírio
Alheios à agitação habitual de um fim de tarde na estação de comboios do Cais do Sodré, em Lisboa, quatro jovens na casa dos 20 anos, sentados nos degraus da entrada, conversam em inglês sobre as suas experiências como estudantes Erasmus em Portugal. Podiam estar a preparar-se para passar mais uma noite pelas ruas daquela zona, centro da vida noturna lisboeta, mas hoje o plano é outro: cada um trouxe um saco com roupas, sanduíches, frutas, sumos e enlatados para oferecer aos sem-abrigo da cidade. O dia, 1 de março, não foi escolhido por acaso: era o encerramento de uma campanha de apoio aos sem-abrigo que durou todo o mês de fevereiro e que foi organizada e levada a cabo exclusivamente por estudantes estrangeiros em Lisboa.
Agarrado ao telefone, Victor Micu, um estudante de engenharia de 24 anos natural de Bucareste, capital da Roménia, vai organizando o evento. Os quatro estão ali desde as 19h30. “Já cá passaram colegas para deixar roupa e alimentos, mas que não puderam ficar para a distribuição. E também estou aqui a receber mensagens de outros colegas que vêm mais tarde com bens para oferecer e que vão ficar connosco”, comenta o jovem, que no início do mês de fevereiro criou a campanha #NoHeatFebruarydepois de se aperceber de que, afinal, “Portugal não era o país tropical” que os estudantes estrangeiros esperam encontrar quando se candidatam.
Com Victor estão também Fabio Mesturino, estudante italiano de 23 anos que ajudou o romeno a organizar a iniciativa, a checa Anet Borková, de 21 anos, que já conhecia os dois jovens de alguns eventos destinados a alunos de Erasmus, e ainda a alemã Mimi Ngo Thi, de 25 anos, que conheceu Victor “há meia hora”, quando ele publicou a iniciativa num grupo de WhatsApp de estudantes estrangeiros, e decidiu juntar-se à campanha. Mas o grupo rapidamente cresce. Entre as 20h30 e as 21h00 vão chegando ao local combinado mais estudantes estrangeiros, vindos de toda a Europa e também de fora. Todos trazem sacos com comida e roupas, que trouxeram de casa ou compraram; uns deixam os bens, outros ficam para ajudar na distribuição.
No total, juntam-se ali dez estudantes, cada um com um ou mais sacos. Depois das 21h00, Victor junta o grupo e faz o briefing, já que, para muitos, aquela é a primeira vez que vão fazer algo do género. A ideia é começar na zona do Cais do Sodré, ir andando até à estação de comboios de Santa Apolónia e terminar no Rossio. “Enquanto tivermos coisas para dar, vamos procurando mais gente”, explica o romeno.
A primeira paragem é ainda no Cais do Sodré, para deixar fruta e sanduíches a um homem que se prepara para dormir nas traseiras da estação ferroviária. Mais à frente, nas arcadas de um edifício, cerca de uma dezena de pessoas já dormem, embrulhadas em cobertores e protegidas por cartões. Os jovens decidem fazer ali a segunda paragem. “Em silêncio para não acordarmos as pessoas. Deixamos sandes ao pé de cada um”, pede Victor. Demasiado tarde: um cão, única companhia de um dos sem-abrigo que ali dormem, aproxima-se deles e acorda o dono. É Fabio quem se aproxima para explicar o que ali estão a fazer. Já tinha decorado um conjunto de palavras em português, como camisola, cobertor, comida ou água. O homem agradece-lhes emocionado, e os jovens acabam por deixar ali várias das camisolas e mantas que traziam, além de um saco cheio de produtos alimentares.
Vinte minutos depois, estão na estação de Santa Apolónia. Apercebendo-se da presença dos jovens, vários sem-abrigo aproximam-se, chamando outros. Cada um traz o seu saco, já habituados à recolha rotineira de ofertas entregues por voluntários diferentes todos os dias. A afluência obriga os jovens a organizarem uma espécie de linha de montagem. Cada um entrega um produto diferente e todos os que deles se aproximam fazem-no sem pressa e tiram apenas aquilo de que precisam. A maioria afasta-se de imediato, despedindo-se com um “obrigado” tímido. Outros, ficam a conversar com os estudantes, que se esforçam por falar em português.
Depois de Santa Apolónia, já sobra pouco nos sacos. A decisão é então rumar ao Rossio, onde todas as noites várias instituições de solidariedade organizam distribuições de maior dimensão. A viagem de metro é breve e em poucos minutos o grupo chega à praça lisboeta para entregar os seus bens à associação Noor’Fatima e acabar ali a noite. No final, cada um dos jovens que participou no evento dirige-se a Victor Micu para o abraçar, para lhe agradecer. “A sério, o que tu fizeste é espetacular“, diz-lhe Tania, uma estudante suíça luso-descendente. “Nunca tinha visto um projeto de Erasmus como o que o Victor e o Fabio fizeram”, comenta a checa Anet Borková. “A maioria dos estudantes vai para festas todos os dias.”
Das piadas sobre o inverno português à solidariedade
Um mês antes desta noite, a 1 de fevereiro, Victor Micu aterrou em Portugal vindo das férias que passara na capital romena. Já havia feito o primeiro semestre em Portugal, na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, mas tinha gostado tanto do país que decidiu estender o seu período de Erasmus por mais um semestre, escrevendo a tese de mestrado na capital portuguesa. Teve apenas de ir a Bucareste tratar da documentação que lhe permitiria fazer mais um semestre em Lisboa e no final de janeiro rumou novamente a Portugal.
O primeiro semestre tinha sido quente. Mesmo dezembro e janeiro tinham sido meses bastante mais quentes do que o normal, e Victor não vinha preparado para tão súbita descida de temperatura. “Sabia que ia estar um bocadinho mais frio, mas quando cheguei a casa, os meus amigos estavam todos vestidos com os casacos, dentro de casa“, recorda o romeno. Um desses amigos era Fabio Mesturino, que lembra: “Em Itália, a maioria das casas tem sistema de aquecimento, aqui não é assim e isso foi uma coisa que me chocou quando cheguei cá.” Anet Borková ficou igualmente surpreendida com essa realidade. “É tão estranho que aqui em Portugal esteja quase a mesma temperatura dentro e fora de casa. Ou às vezes até mais quente fora de casa do que dentro”, diz a jovem.
Para enfrentar o frio, Victor e Fabio começaram a fazer piadas sobre o inverno português e a publicá-las na Internet. A primeira foi uma fotografia dos dois agasalhados dos pés à cabeça dentro de casa a declarar “aberto” o #NoHeatFebruary. “Pensámos na famosa hashtag #NoShaveNovember e lembrámo-nos de fazer a nossa própria hashtag. De imediato, começámos a ter muitas reações, sobretudo de outros estudantes de Erasmus, que se identificavam com a nossa situação.”
Na Roménia, explica Victor, “no verão as temperaturas podem chegar aos 40ºC, mas no inverno podem chegar aos -20ºC, por isso todas as casas têm sistemas de aquecimento”. Em Portugal não é bem assim: um estudo divulgado pela Quercus em dezembro mostrava que apenas um em cada 100 portugueses diz ter a casas termicamente confortáveis, evidenciando que 74% dos inquiridos considerava que as suas casas são frias no inverno. No mesmo estudo, era recordada uma investigação da Universidade de Dublin, de 2003, que concluía que Portugal era um dos países da União Europeia onde morrem mais pessoas por falta de condições de isolamento e aquecimento nas casas.
Porém, não é essa a ideia que os estudantes de Erasmus têm de Portugal quando se candidatam a um programa de estudos no país. “Toda a gente que vem para cá vem com esta imagem de que Portugal é um país tropical, que não tem inverno, que tudo aqui é quente e agradável. Depois, quando chega o inverno, o frio atinge-os dentro de casa e não fora. Nós começámos a fazer piadas sobre termos de sair de casa se nos quiséssemos aquecer“, lembra Victor.
As fotografias de Victor e dos amigos agasalhados dentro de casa com a hashtag #NoHeatFebruary fizeram sucesso entre a comunidade de estudantes estrangeiros em Lisboa. Começaram a chover reações e, dois dias depois, as primeiras fotografias enviadas por colegas. “Enviavam-nos fotografias em t-shirt ao lado de aquecedores, ou então fotografias também cheios de casacos. Sempre com a mesma hashtag para nós republicarmos as imagens nas nossas contas”, lembra. Durante uns dias, tudo não passou de uma brincadeira de redes sociais para gozar com o inverno e ajudar a passar o tempo frio.
A brincadeira evoluiria para algo mais sério quando Victor decidiu participar num evento solidário organizado pela Erasmus Student Network Lisboa (ESN Lisboa), uma organização sem fins lucrativos presente em vários países da Europa para dar apoio aos estudantes internacionais. O objetivo do evento, que reuniu dezenas de estudantes de Erasmus durante uma noite de fevereiro, era oferecer roupa e comida aos sem-abrigo da cidade.
“Quando participei naquele evento, acabei por relacionar as duas coisas. Nós estávamos a gozar com o inverno, porque de facto tínhamos condições complicadas dentro de casa, mas aquelas pessoas sofrem a sério com o problema do frio e não é bonito gozar com isso. Nós podíamos mudar a nossa situação.Podíamos comprar um aquecedor, se quiséssemos, tínhamos essa possibilidade. Mas há pessoas que não têm e que sofrem a sério. Não têm alternativa“, diz Victor.
Durante aquela noite, em que os estudantes Erasmus apoiaram a distribuição de alimentos e roupas da associação CASA, Victor bebeu chá com os sem-abrigo e ouviu as suas histórias. “Muitos deles eram de outros países, vieram para Portugal e tiveram algumas infelicidades que os levaram àquele ponto. Outros eram professores universitários, trabalhadores cujas empresas fecharam, músicos. Histórias diferentes, que nos fizeram perceber que nem todos eles começaram mal, simplesmente acabaram numa situação assim.”
Voltou a casa, falou com o seu amigo italiano e os dois decidiram dar aquilo que descrevem como um “social twist” à campanha que tinham iniciado. Iriam manter “o tom cómico”, nomeadamente através das referências à falta de aquecimento central e das fotografias com os agasalhos dentro de casa, ideias que atraíam os outros estudantes internacionais. “Mas também podíamos tentar converter aquele entusiasmo numa atividade social“, sublinha Victor. E decidiram acelerar a campanha.
Começaram a publicar fotografias diárias e a intensificar os apelos para que outros estudantes enviassem imagens. Nas descrições das imagens, escreviam alertas sobre a situação dos sem-abrigo em Lisboa e apelavam à ação — à oferta de comida e roupa. “Queríamos fazer uma call to action, mas não foi muito eficaz. As pessoas punham likes nas imagens, comentavam, diziam que estávamos a fazer o que estava certo, mas toda a gente ficava em casa”, lembra, sublinhando que “a sensibilização tem o seu efeito, mas se não há call to action não acontece nada”.
A duas semanas do fim de fevereiro, Victor foi buscar inspiração a mais uma das grandes pérolas da Internet e teve a ideia que mudou a iniciativa: criar um desafio à maneira do famoso Ice Bucket Challenge, também uma campanha de sensibilização para causas sociais. Começou por nomear três amigos, que deveriam escolher entre passar uma noite em casa sem aquecimento ou ir à rua oferecer comida e roupa a um sem-abrigo. Dois dias depois, a primeira pessoa aceitou o desafio, e nem sequer foi em Portugal: foi uma amiga de Victor na Roménia.
A amiga nomeou três pessoas, essas três pessoas nomearam mais três cada uma e o movimento começou a espalhar-se primeiro em Bucareste. Dias depois, também em Portugal alguém aceitou o desafio e o movimento começou a expandir-se. “É um movimento pequeno, não é uma grande bola de neve, mas conseguimos encontrar a tal call to action de que precisávamos, que fez com as pessoas se sentissem parte da campanha”, recorda o estudante romeno.
Anet Borková foi uma das nomeadas no desafio, e foi assim que se envolveu na história. “Todos os meus amigos estavam a nomear-se uns aos outros, até que eu também fui nomeada“, lembra a estudante checa. “Adoro a ideia e adoro as nomeações”, acrescenta, sublinhando que o processo acabou por servir também para acolher muitos estudantes que vieram no segundo semestre para Lisboa.
Determinado a não deixar que a morte da campanha fosse apenas marcada pelo fim das publicações regulares quando o mês acabasse, Victor decidiu organizar um evento para assinalar o final da campanha. Até porque, embora tenha tido alguma adesão, as doações resultantes do desafio lançado na Internet não lhe pareceram suficientes. Como explica o estudante romeno, “nem toda a gente responde, porque têm de o fazer por si próprios e talvez não queiram fazê-lo sozinhos”. Por isso, pensou em organizar uma iniciativa em grupo. Um “evento final” para o qual convidou toda a gente que tinha aderido à hashtag. O objetivo: passar uma noite pelas ruas de Lisboa, juntar a maior quantidade de bens alimentares e roupa que conseguissem e, em grupo, distribui-los pelos sem-abrigo. Era a forma de terminar o #NoHeatFebruary com dignidade, garante o seu criador.
Eis-nos novamente no dia 1 de março, no Cais do Sodré, o local combinado para o tal evento final. Apareceram velhos conhecidos, como a checa Anet, a italiana Francesca, a grega Dimitra, a luso-suíça Tania, a colombiana Camila ou a romena Laura, mas também a alemã Mimi Ngo Thi, que nunca tinha visto Victor, Fabio ou qualquer outro dos participantes. “Conheci-os há meia-hora”, comentava no início da caminhada. “É a primeira vez que faço algo assim em Portugal. Na Alemanha, já participei em campanhas de oferta de roupas, sobretudo a refugiados na minha cidade natal“, conta a alemã.
Fabio Mesturino, o italiano que ajudou Victor a organizar a iniciativa, acolhe os estudantes que vão chegando enquanto o romeno trata dos detalhes da organização, e vai recordando a história aos que chegam. Ao mesmo tempo, comenta que também é a primeira vez que está a participar numa ação do género. “Estou a tentar ser mais altruísta. Agora que já experimentei e que já vi como é bom ajudar as pessoas, tenho a certeza de que quando voltar a Itália vou tentar fazer o mesmo. Talvez o Erasmus seja uma boa ocasião para fazer algo novo também neste sentido.”
Já no Rossio, na despedida, Victor Micu diz que não será ele a dar início ao #NoHeatMarch. “Não faria sentido continuar esta campanha, que tem um contexto particular da questão do frio no inverno”, explica. Mas não é suposto ficar por aqui. “Espero ter encorajado os estudantes de Erasmus a empenharem-se nesta dimensão social e espero que apareçam mais projetos. De certeza que me vou envolver neles para os apoiar.”